Aos 70, ela recomeçou: dona Francisca e o sabor do empreendedorismo no interior goiano

Após a aposentadoria, uma nordestina encontrou nos queijos finos artesanais o caminho para reinventar a vida e inspirar outras mulheres da zona rural de Goiás

Dona Francisca, aos 72 anos, mostra com orgulho o queijo coalho artesanal que produz no sítio onde vive, no interior de Goiás (Foto: Mari Magalhães)

O cheiro do leite fervendo toma conta da cozinha simples do Sítio Taperebá, uma pequena propriedade no município de Amorinópolis, interior de Goiás. As mãos de dona Francisca Magalhães se movem com firmeza: mexe o líquido com delicadeza, observa o ponto certo, confere o tempo. O que parece um ritual antigo, na verdade, é um recomeço recente. Foi apenas três anos atrás que ela decidiu iniciar uma nova etapa da vida, quase aos 70 anos — e se tornar empresária de queijos finos artesanais.

A decisão de empreender surgiu após uma mudança na vida familiar, da cidade para o campo. Foi quando começou a buscar algo novo — e encontrou no queijo uma paixão. “Eu vi uma oportunidade de negócio sem muitas pretensão, mas fui me capacitando pelo Serviço Nacional de Aprendizagem Rural (SENAR) e descobri que eu tinha talento pra confeccionar queijos, daí foi acontecendo naturalmente”, relembra ela. Dona Francisca, que é nordestina de nascença, resgatou nessa atividade uma memória afetiva, pois seu avô era produtor do queijo coalho, e quis fabricar esse queijo aqui em Goiás.

Hoje, Francisca Magalhães, com 72 anos, produz cerca de 100 kg por mês, entre coalho, ricota e parmesão. A distribuição é feita de forma direta: os queijos são embalados a vácuo, transportados em caixas térmicas, com entregas semanais realizadas por ela mesma ou com apoio de familiares — principalmente para estabelecimentos parceiros nos municípios vizinhos. Os principais desafios logísticos envolvem a conservação em temperaturas adequadas durante o transporte e as dificuldades das estradas rurais, que limitam o alcance da produção.

Os queijos são vendidos em feiras, empórios da região e sob encomenda. Tudo de forma artesanal, com leite vindo de produtores locais e um cuidado que virou marca registrada. “Defino meu negócio como exclusivo, mas atenta para não perder mercado, inovando e buscando conhecimento. Atuo com o queijo coalho que já está no mercado. Agora estou fazendo o lançamento do queijo Fogaréu, especial pra tábuas de frios.”, comenta a empreendedora rural.

O pequeno negócio ainda está em processo de adequação, mas já pensa grande. “Quero encontrar um nicho onde não há tradição para esse queijo e estabelecer este produto na região. Aos poucos estou conseguindo”, celebra.

Os desafios, porém, ainda existem. Um dos maiores tem sido a legalização completa da produção. “Os principais desafios para legalizar o negócio são financeiros, por causa da exigência de uma estrutura adequada, que ainda está em andamento. Mas tanto o SENAR quanto o Sebrae têm dado um suporte importante, que nos impulsiona a buscar essa legalização e nos torna mais competitivos diante das exigências do mercado”, afirma Francisca.

A história dela também se conecta a um movimento maior de valorização da produção local e da inovação no campo. De acordo com Naila Borba, técnica de campo da Agroindústria Artesanal do SENAR, os cursos gratuitos e o suporte técnico oferecido para as famílias da zona rural têm contribuído para que pequenos negócios como o de dona Francisca consigam se regularizar e se tornar competitivos.

“O SENAR, a Agrodefesa e o Ministério da Agricultura e Pecuária já discutem uma mudança na legislação — a regulamentação da Lei nº 13.680/2018 — que visa simplificar o processo de certificação para produtos artesanais de origem animal. A ideia é oferecer um modelo mais acessível, porém com inspeção e licença, para permitir a comercialização dentro do estado”, explica Naila Borba.

Dona Francisca transformou sua rotina na roça em um negócio de sucesso. Segue as etapas da produção artesanal de queijo coalho valorizando o saber tradicional e movimentando a economia local (Fotos: Mari Magalhães)
Dona Francisca transformou sua rotina na roça em um negócio de sucesso. Segue as etapas da produção artesanal de queijo coalho valorizando o saber tradicional e movimentando a economia local (Fotos: Mari Magalhães)

Empreender com maturidade: um retrato nacional

A história de Francisca Magalhães reflete uma tendência crescente no estado de Goiás e no Brasil. Segundo a 5ª edição do relatório “Perfil da Empreendedora Goiana”, publicado em março de 2025 pelo Sebrae Goiás em parceria com a Universidade Federal de Goiás, mais de 350 mil mulheres atuam como empreendedoras no estado. Esse número representa cerca de 21% do total de mulheres ocupadas no estado, evidenciando a força do empreendedorismo feminino na região.

Dados do Sebrae, do Global Entrepreneurship Monitor (GEM) e do IBGE apontam que o perfil da mulher empreendedora no Brasil tem se transformado nos últimos anos. Mais da metade dos novos negócios no país são comandados por mulheres e elas representam cerca de 34% do total de empreendedores, segundo a pesquisa GEM 2023. A maioria das empreendedoras está na classe C, mas nos últimos anos houve crescimento também nas classes D e E, indicando um aumento do empreendedorismo por necessidade — muitas vezes motivado pelo desemprego ou pela dificuldade de inserção no mercado formal de trabalho, como é o caso de pessoas da terceira idade.

Outro dado relevante é que cerca de 60% das empreendedoras brasileiras têm ensino médio completo ou superior, o que revela um avanço na qualificação das mulheres que decidem abrir um negócio. Dona Francisca faz parte desse grupo: foi pedagoga e chegou a cursar Administração de Empresas antes da aposentadoria.

Essa concentração de mulheres empreendendo em idade mais avançada também chama atenção: indica que muitas empreendem em um momento de maior maturidade profissional e pessoal — como no caso dela. “Ser empreendedora pra mim é motivo de acordar e saber que eu tenho metas, compromisso, relacionamentos e principalmente ser produtiva e ver que outros se espelham”, reflete Francisca.

A trajetória de Francisca Magalhães é sobre mais do que queijo. É sobre coragem, reinvenção e força feminina. Ainda assim, não romantiza a rotina. “Empreender é gratificante, mas é cansativo também, porque além de empreender, as tarefas do lar continuam. Mas é desafiador.”, finaliza ela.

No fim das contas, Dona Francisca vê sua jornada como um marco da sua fase setentista — uma prova de que nunca é tarde para empreender, transformar e inspirar. É sobre dizer “sim” a um novo começo, mesmo quando o mundo já esperava o fim.

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Autor: Mari Magalhães

Mari Magalhães é jornalista, roteirista, assessora de imprensa e fotodocumentarista com mais de 10 anos de atuação na cultura goiana Seu foco está voltado para novos talentos da música urbana contemporânea, cinema e atividades da cena underground. Contato:[email protected]

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