Produção estrelada por André Lamoglia e Juliana Paes revela os bastidores do “máfia tropical”
A disputa por poder e sangue chega à Netflix com a série “Os Donos do Jogo”. Nesta quarta-feira (29/10), a plataforma lança a produção brasileira que mergulha no universo clandestino do jogo do bicho no Rio de Janeiro. Dirigida por Heitor Dhalia, a produção promete revelar o lado oculto de uma das contravenções mais poderosas e influentes do país.
Gravada em locações reais da capital fluminense, a trama mistura crime, drama familiar e ambição, acompanhando a trajetória de Profeta, personagem vivido por André Lamoglia, que sonha em conquistar o trono do jogo. Ao lado dele, estão nomes como Juliana Paes, Chico Díaz, Mel Maia, Giullia Buscaccio, Xamã e Otávio Muller.
Com ritmo de thriller e estética cinematográfica, a série “Os Donos do Jogo” expõe as tensões entre quatro famílias que controlam os negócios da contravenção: Moraes, Guerra, Fernandez e Saad. Segundo Dhalia, a criação partiu de uma investigação minuciosa que cruzou relatos de policiais, jornalistas e personagens reais do submundo carioca.
“É ficção, mas com um grau de verossimilhança bastante alto”, explicou o diretor à BBC Brasil. “Entendemos que para traduzir um universo complexo como esse precisávamos de uma pesquisa muito fundamentada.”
“Os Donos do Jogo” nasce do olhar de Dhalia sobre o Brasil profundo e suas redes invisíveis de poder. O cineasta, responsável por produções como “DNA do Crime”, “Serra Pelada” e “O Cheiro do Ralo”, define o novo projeto como a criação de um “máfia tropical”, um gênero que mistura glamour, violência e realismo.
O ponto de partida é Profeta, um jovem ambicioso criado em Campos dos Goytacazes. Filho de bicheiro, ele parte para o Rio decidido a dominar o império dos jogos ilegais. A ascensão rápida do personagem o coloca frente a frente com as dinastias que comandam a cidade, especialmente a poderosa família Guerra.
Assim como na ficção, o jogo do bicho real também se estrutura em clãs familiares, com hierarquias rígidas e disputas por territórios. O sociólogo Daniel Hirata, coordenador do Grupo de Estudos dos Novos Ilegalismos da Universidade Federal Fluminense (Geni-UFF), explica o fenômeno.
“O familismo é uma característica bastante marcante do jogo do bicho como grupo criminal”, afirma. “Há uma herança que se transmite através das famílias, inclusive para aqueles que não estão diretamente envolvidos nos negócios ilícitos.”
Dentro e fora da ficção, o poder no jogo do bicho é transmitido como um trono. Os Guerra, núcleo central da série “Os Donos do Jogo”, são comandados por Búfalo (Xamã), ex-lutador de MMA que assume o controle dos negócios ao se casar com Suzana (Giullia Buscaccio). Mas a estabilidade do clã desmorona quando Mirna (Mel Maia), irmã de Suzana, desafia o comando da própria família.
A rivalidade entre irmãs, um dos pontos altos da trama, tem ecos na realidade. No mundo real, disputas semelhantes já ocorreram entre as filhas gêmeas de Waldomiro Paes Garcia, o Maninho, um dos bicheiros mais conhecidos do Rio. A história delas foi contada no documentário “Vale o Escrito”, do Globoplay.
A série também recria a cúpula do bicho, entidade que centraliza o poder e regula o equilíbrio entre os grupos. Esse conselho lembra a Liga Independente dos Bicheiros, formada nas décadas de 1970 e 1980 por nomes como Castor de Andrade, Anísio Abraão David, Capitão Guimarães e Turcão. Foi esse grupo que consolidou a estrutura da contravenção e se infiltrou na cultura e na política carioca.
Heitor Dhalia deixa claro que todos os personagens são fictícios, ainda que inspirados em figuras reais. “Pegamos todos os elementos [das famílias e figuras da realidade] e pusemos num caldeirão. Quando começamos a mexer, virou outra coisa”, contou. “As pessoas vão fazer mil associações, mas não tem como bater nada com nada, porque tudo foi modificado.”
Mesmo assim, o público já começou a apontar semelhanças da série “Os Donos do Jogo” com a realidade. A família Guerra, por exemplo, lembra o clã Andrade, liderado por Castor de Andrade, considerado um dos maiores bicheiros da história. Assim como Búfalo na série, Fernando Iggnácio, genro de Castor, assumiu parte dos negócios após a morte do sogro, em 1997.
O império dos Andrade também foi palco de tragédias. O filho de Castor, Paulinho Andrade, foi assassinado em 1998, e Fernando Iggnácio morreu em 2020, em um crime atribuído pelo Ministério Público do Rio a Rogério de Andrade, sobrinho de Castor. Rogério, preso desde 2024, ainda é considerado um dos bicheiros mais poderosos do Rio.
O universo que “Os Donos do Jogo” retrata está longe do glamour. Para Dhalia, a série revela como o crime se sustenta sobre violência e domínio territorial. “Nossa ideia é mostrar como funcionam as engrenagens de poder, que estão mediadas pelo sangue, pelo território e eventualmente pela guerra e pela violência”, afirmou à BBC Brasil.
Entre 1999 e 2007, a guerra entre Rogério Andrade e Fernando Iggnácio deixou mais de 50 mortos. O assassinato de Maninho Garcia, alvejado por quatro tiros de fuzil em 2004, também é lembrado como um dos episódios mais brutais da disputa pelo controle do jogo.
Apesar de dominado por homens, o submundo retratado na série “Os Donos do Jogo” reserva espaço para figuras femininas que desafiam o sistema. Mirna Guerra (Mel Maia) tenta provar que pode comandar os negócios da família. Já Leila Fernandez (Juliana Paes) usa o poder da sedução e da influência para disputar espaço com o marido, o veterano Galego (Chico Díaz).
A nova produção da Netflix também aborda o elo entre o crime, a política e as forças de segurança. Ao longo da história em “Os Donos do Jogo”, bicheiros financiaram campanhas e mantiveram relações próximas com autoridades.
“O jogo do bicho sempre atuou no financiamento de campanhas políticas, mas mais importante que isso talvez seja que os bicheiros têm relações muitas vezes públicas e notórias com pessoas proeminentes da política nacional”, afirma Hirata.
Os vínculos com a polícia também são históricos. Em 2023, uma investigação do Ministério Público do Rio de Janeiro (MPRJ) revelou que Rogério Andrade pagou R$ 502 mil em propina a batalhões da PM e delegacias da Polícia Civil em apenas dois dias, para garantir a continuidade das apostas ilegais e das máquinas caça-níqueis.
A era digital também chegou ao submundo do bicho. Em “Os Donos do Jogo”, Profeta tenta lucrar revendendo apostas online para quem não sabe usar plataformas de bets.
Na vida real, a migração para o mundo virtual já é uma realidade. Investigações recentes mostram que bicheiros tradicionais têm usado sites de apostas para lavar dinheiro e expandir seus negócios. Em setembro do ano passado, a Polícia Civil de Pernambuco deflagrou a Operação Integration, que revelou conexões diretas entre o jogo do bicho e plataformas de apostas esportivas.
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